PÚBLICO: 14 de Maio de 2010
Corrida de obstáculos
Ricardo Garcia
Acordo decidido e delibero, para júbilo da atmosfera: "Hoje vou a pé para o comboio." Por norma, levo o carro e deixo-o algures perto da estação. Trajecto curto, motor frio e velocidades baixas, porém, resultam em maiores emissões relativas de CO2. O dano ambiental por quilómetro rodado é maior.
"Vou a pé", determino, portanto. E vou.
Saio de casa e desço a minha rua, consciente de que não é dos percursos mais mirabolantes, em termos paisagísticos e funcionais. O primeiro obstáculo não demora a aparecer: um carro sobre o passeio. Não é um automóvel qualquer, mas um brutamontes desses que estão na moda - os SUV - de dimensões inversamente proporcionais à consciência ecológica do dono. Além de grande, o carro encontra-se num ângulo tal que é impossível escalá-lo e passar-lhe por cima, que é o que às vezes faço. Dou a volta ao jipe pela rua.
Mais à frente, novos automóveis populam o espaço em tese destinado aos transeuntes, desta vez diante de um bar de alterne. Os respectivos condutores possivelmente ainda convalescem. Há algum espaço para passar, mas é de lado, encolhendo a barriga.
Tudo corre bem nos dez metros seguintes, até que me deparo com o omnipresente ecoponto. Os três contentores - o amarelo, o verde, o azul - reverencialmente ornados com excedentes da reciclagem espalhados pelo chão barram-me o caminho natural, que seria em linha recta.
Contornado o ícone do bom samaritano ambiental, eis que o passeio desaparece. Alguém deve ter julgado que não era mais necessário. Ressurge mais adiante, mas em versão limitada. É apenas uma estreita língua de calçada, sobre a qual os pés só cabem em fila indiana. Sob equilíbrio periclitante, não há alternativa. Volto para a rua, partilhando-a com carros que vêm na minha direcção, em amena fraternidade.
Mal se alarga novamente o passeio, são os automóveis que, sedentos de parqueamento, o ocupam. Não me resta senão prosseguir pela rua, onde por pouco não sou civicamente aniquilado por um camião de cerveja. Do ponto de vista etílico, convenhamos, seria um final em grande.
Enfim, atinjo uma zona onde o passeio, protegido por pilaretes, está de facto reservado aos peões - por clamorosa incompetência do urbanizador. Regozijo-me e, absorto em pensamentos semiluxuriantes sobre a qualidade de vida, respiro fundo. E a inalação dos humores circundantes é o que me safa. Evito, in extremis, o contacto pedestre com um testemunho da biodiversidade canina, depositado bem no meio do caminho. O animal devia ser dos grandes, porque a coisa é de porte substantivo, passível tanto de pisoteio como de pontapé.
Já lá vão cinco minutos de caminhada e começo a ficar cansado do ziguezague. Sou ultrapassado por uma mulher que deve fazer aquele trajecto todos os dias. Contorna os obstáculos com tal destreza que me fixo na sua retaguarda, à guisa de farol, e sigo as suas manobras. Compreensivelmente, desconcentro-me. E dou de caras com um camião a descarregar material de construção, cujo motorista, com 50 quilos de cimento às costas, olha para mim com ar de poucos amigos. Penso no princípio da precaução, pondero os riscos e regresso à estrada.
Pouco mais adiante, o passeio afunila-se de novo. Desta vez, ando com um pé na calçada e o outro na rua, indiferente às possíveis consequências ortopédicas do acto. Um poste - sempre há um poste no caminho - acaba por inviabilizar o passo coxo, e novamente junto-me aos automóveis. Mas já estou perto, falta pouco.
Na descida final, o passeio, já de si fininho, é abolido por completo. Naquela rua, o asfalto até é novo, mas as autoridades rodoviárias, lineares, esqueceram-se de quem anda a pé. O último obstáculo é a travessia de uma via movimentada. Surpreendentemente, o sinal para peões está verde. Cogito jogar na lotaria.
Finalmente, chego à estação. O comboio acabou de passar, mas não importa. Deixei o carro em casa e quase morri por isso. Mas vou para Lisboa com a consciência livre de carbono. Viva a mobilidade sustentável!
Jornalista
rgarcia@publico.pt
Já tinha lido. Muito bom.
ResponderEliminarAlguém sabe a que zona é que ele se refere?
ResponderEliminarPortugal? :)
ResponderEliminarAcho que intenção era mesmo não saber...como qq um de nós pode verificar, pode ser qualquer sítio neste jardim à beira mar plantado.
Eu sei onde vive. Mas esse pormenor estragaria um pouco o artigo. Isto assenta bem a muitos sítios deste país.
ResponderEliminarTirando o bar de alterne (que já fechou faz mais de quinze anos) diria que era em Alvalade!
ResponderEliminarAgora só falta aparecer aquele pessoal a dizer "Estão a ver?? Não há escolha, tem que ser de carro!"
ResponderEliminarEstão a ver?? Não há escolha, tem que ser de carro!
ResponderEliminarExcelente depoimento. E que tal mandar este artigo ao Dr. António Costa e à Polícia Municipal de Lisboa?
ResponderEliminarSe ele ia para Lisboa é porque isto não é em Lisboa
ResponderEliminarAndar a pé faz parte do sistema de mobilidade, mesmo usando outros meios de transporte, inclusivé o automóvel privado! Desenganem-se os pópófans, que a pé terão que fazer parte do trajecto.
ResponderEliminaré, digamos, o direito fundamental de qualquer cidadão: poder circular a pé, livre e em segurança! Não há desculpa para não ser a primeira das prioridades de qualquer cidade.
corto.maltese@iol.pt
"Desenganem-se os pópófans, que a pé terão que fazer parte do trajecto." Talvez seja essa a razão de estacionarem bem em frente do lugar onde querem ir. Já sabem o que a casa gasta...
ResponderEliminarOu sonhem todos em comprar um condomínio fechado e tentem andar de carro de garagem a garagem. Querem que isto se torne como a América do Sul. Eles andam bem. Os outros que se lixem.
ResponderEliminarMuito bom!
ResponderEliminarPode ser que alguma sumidade leia o artigo...ou então não e continuam a cagar no assunto!
Espectacular artigo!!! Lindo...
ResponderEliminarparece o meu dia a dia...
ResponderEliminarhttp://www.cmjornal.xl.pt/noticia.aspx?contentid=9BDD061B-4EE7-4856-92C9-B1DDE53A0AED&channelid=00000010-0000-0000-0000-000000000010
ResponderEliminarAnalise me a situação,por favor.
O senhor era meu avô,podiam me dizer o que acham do sinal que o matou,a sua colocaçao?Se ha lei que me ajude a mostrar a minha revolta?se ha responsaveis pela sua má colocaçao?
Já me dirigi a camara.
é uma situaçao delicadissima.
Eles desculpabilizam se com pavimentaçao e obras num passeio mais a frente.
A meu ver esse sinal esta mal,obstrui totalmente o passeio,que grande nao é(o sinal poderia estar anexado a uma casa,ou o poste junto a casa).A acrexer ser um cruzamento perigosissimo que se encontrava com sinais luminosos em versao intremitente(amarela),o que sugeriu a condutora do veiculo que bateu,que o sinal estaria a piscar amarelo por passar de verde para vermelho.Nunca que estaria amarelo á semanas.
O meu avô nao volta,mas nao quero que mais ninguem fique sem avôs!
o meu contacto cristina_jarmelo@hotmail.com
Obrigado
Cristina, arranje um bom advogado e processe os responsáveis pela colocação/manutenção do sinal. Não deixe isto passar.
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